sexta-feira, 19 de julho de 2013
Inverno ameno dos trópicos com mamãe
É a segunda vez na semana que mamãe lava o alpendre, é a segunda vez na semana que ela parece se sentir um pouco mais espirituosa. Não reclamou ainda de que a noite anterior se estendeu um pouco mais devido à visita de meus primos, nem das risadas incontroláveis que ecoavam por toda a velha casa da vovó. Mamãe disse que é preciso lavar o alpendre toda semana e isso inclui lavar a calçada também, mas não creio que haja tanta necessidade assim, talvez eu seja um tanto relapsa com casa e limpeza, mas tal hábito jamais existiu em mim, em meu dia, então, não me culpo por ser um pouco alheia. Acordada desde as sete da manhã, perece que o sol das oito é o mais revigorante, talvez seja só o sol do inverno, inverno ameno dos trópicos, que tem me deixado mais tolerante à luz natural. Mamãe pintou os cabelos ontem, estão tão pretos, tão bonitos! Ela fará cinquenta anos mês que vem, uma idade em que se começa a ser sábio, ou a se ganhar tal status, só se é realmente sábio na proximidade com a velhice, a idade chega a ser uma característica agregada e essencial da sabedoria. Mas mamãe tem os traços joviais e o corpo também, talvez isso desvie um pouco o olhar sobre sua sabedoria, embora para mim ela tenha sido mestre desde o princípio, não poderia ser diferente. Essa semana tive um sonho em que me diziam que o meu defeito era ser muito jovem, que eu tinha quase todas as qualidades que interessavam à uma pessoa, mas perdia a credibilidade de todas elas por ser tão jovem! Foi um sonho de angústia, talvez eu quisesse que minhas qualidades fossem salientadas nele, mas também gostaria de poder ter sido mais velha nele, que desejos não realizáveis essa parte esconde? Farei uma melhor análise comigo mesma logo mais. Mamãe hoje sonhou com um cadeado, não conseguia fechá-lo ou abri-lo, foi o que ela me disse. Perguntei se era o cadeado do portão daqui de casa, ela disse que sim. Acho que ela realmente queria mandar embora os sobrinhos ontem à noite, mas não reclamou, só em seu sonho. Mamãe é muito diligente, já está acabando a limpeza e depois pensará no almoço e me pedirá para buscar minha irmãzinha na escola. Ela poderia se sentar, ler, tomar um café, contar algo sobre si mesma, mas o espírito de ser útil lhe corrompeu tanto que não sei se o retorno para momentos de calmaria e reflexão serão feitos na minha presença opressora de filha. Opressora pois eu a lembro da realidade e de responsabilidades. Eu sou a responsabilidade personificada para ela. Às vezes mamãe diz que deseja viajar, ir à praia, não se preocupar. Esse não-stress não depende da praia, mas eu não conseguirei fazer com que ela se permita, minha explicação ou observação também são inúteis, sou a mera personificação de responsabilidade!
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Que baita crônica bonita, Raquel. Notável como você tem transitado por temas densos e leves com habilidade.
ResponderExcluirCurioso que, talvez sem perceber, você tenha interpretado seu sonho no fim do texto, fazendo valer a máxima lacaniana (relendo Freud, como sempre): “Ali onde se estava, ali como sujeito devo vir a ser.”
Abraço.
Obrigada pelos elogios e pelo comentário, fico feliz que tenha gostado da crônica, foi escrita inocentemente. E interpretei e não interpretei, não é mesmo? É o que acontece quando se escreve tentando ser mais fluido. Valeu, de novo. Abraço.
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